sexta-feira, 10 de agosto de 2012

23:39


De repente era como sentir que estava vomitando seu próprio coração que, curiosamente, estava meio maltratado: um pouco corroído de um lado e em cada curva lhe faltava ao menos um pedaço. E ainda mais engraçado: ele batia, e a sensação era extremamente confortável. Não são muitos que podem tocar em seu próprio coração, veja bem.

Não que tivesse escolhido isso, óbvio que não. Mas o corpo da gente faz coisas inimagináveis quando é necessário, como nos fazer esquecer de uma lembrança muito devastadora que nos traz uma debilidade psicofisiológica. E se ele trazia esse benefício, certamente poderia também fazer com que ela vomitasse seu coração, não é mesmo? Era o direito dele, isso ela realmente compreendia.

Sentiu falta do sangue, que ela sabia ser bem vermelho e vívido e com um leve cheiro de estanho misturado com chumbo. Sua vista estava precisa, mais do que sentir, ela se encantava em ver seu coração bater; como era feio o pobre coitado, mas isso não importava, porque era magnético. Ela teve certeza de que seu coração era escorpiano, embora ela mesma não fosse.

Então ele veio, rápido e morno como a vida, escorrendo por entre seus poros -e suas pernas- enquanto seu coração, meio quebrado, maltratado, “velho de guerra”, batia teimosamente em suas mãos! Ela achou divertido: “Olha só como esse cretino não pensa em parar!”

Pelo jeito seu coração gostava de poesias dramáticas, cerejas com creme de leite e renda branca. Apreciava a delicadeza dos dias chuvosos e as lágrimas que ficam para sempre presas nos cílios daqueles a quem nós amamos e destruímos. Leu várias vezes “wuthering heights”, e em Lolita imagino que tenha sido ele a própria Lô aos doze, que Deus o perdoe!

“Por que ele bate? Que física é essa que eu desconheço? Será que é o que chamam de milagre? Fatos inexplicáveis cientificamente. Só sei que tenho nas minhas mãos um coração usado, que bate, e bate, se recusando a morrer, a peste! Eu o encaro, tentando colocá-lo em um caixão – ou de volta ao meu peito- e ele se recusa a ir, batendo, tão teimoso, em minhas mãos, tremendo, pulsando, fazendo vibrar o ar ao seu redor de um jeito particularmente mórbido. Em alguns lugares o sangue parece correr negro.”

O coração também a analisa, enquanto isso, ela pode sentir. “Acho que ele está decepcionado com esse tanto de racionalidade guerreando constantemente com a impulsividade que ele- que às vezes toma o lugar do cérebro- tanto quer que comande. Uma pena que isso aqui não seja utopia, onde os impulsos seriam apenas uma consequência de existir. Não me lembro onde estou, na verdade, então não faz realmente diferença pensar em utopia ou não, não é?”

Ela não percebe exatamente, mas está morrendo. Nunca percebeu, em todas as suas vidas, na verdade. Era assim: se distraía por alguns anos, amando ou sendo amada, e quando dava por si, estava morta. Certamente algo muito constrangedor, não presenciar sua própria morte. É que nunca se espera morrer de amor- e era o que sempre acontecia com ela, em contradição.

Morrer de amor, olhe só. Uma faca na garganta, marcando um corte grosseiro. Teve aquela outra vez também -claro, porque era uma mulher de muitos casos e muitas vidas- que morreu estrangulada por uma corrente de ouro dada por seu irmão, que por acaso tinha a beijado na boca- e em outros lugares- naquela mesma noite. Não gostava de pensar muito nessas coisas- nem na morte, nem no irmão- porque lhe confundiam a cabeça, como se tivesse cheirado éter, mas uma certeza está fincada em sua alma: reconheceria aquele perfume em qualquer lugar.

Ela se lembrava de um padre- ou um sacerdote, ou um númida, quem sabe?- dizer que o amor entre irmãos, quando não era fraternal, era amaldiçoado. Não havia escapatória, sabe? Eles se matariam de tanta culpa e também de desejo. Não se lembrava bem- sua cabeça rodava um pouco- aquelas eram as mãos dele em suas pernas ou eram de Paulo, que conhecera ontem...

A mulher, agora de joelhos, encostada na parede suja, estranhava aqueles pensamentos: não tinha irmãos, não era? Lembrava-se de ter um filho, mas filhos não beijam suas coxas e lambem seus lábios enquanto você chora, não é? Ou talvez estivesse enganada- como era tola a coitada!- porque as mãos que entravam por debaixo de sua saia eram de Bernardo, não, aquele seu vizinho casado?

Estava cansada e aborrecida com aquelas lembranças que ela nunca tinha vivido- ao menos era o que pensava-! Queria dormir logo, mas seu coração, ainda afagado carinhosamente por suas mãos de garras vermelhas, continuava a insistir em bater. “Mas que inferno! Terei que comê-lo!”. Foi a última coisa que pensou antes de ser carregada por alguém que usava aquele mesmo perfume, daquela noite em que fora estrangulada. 


P.S.- ambas as artes são da querida e talentosa Lílian

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