sábado, 15 de setembro de 2012

A maioria das pessoas que já conheci tem medo da morte, eu nem tanto. Gosto de pensar que irei recebê-la como uma velha amiga, sem receio e, se tudo correr bem, com mais harmonias do que arrependimentos. O que eu temo, talvez, seja o processo de morrer, a dor, mas não a morte em si.

As coisas mudam um pouco quando você vê um olhar de pavor nos olhos de uma pessoa enquanto ela treme inteira, os dentes costuram a língua e um tom vermelho mancha a boca ressecada e frouxa.

O pavor, por ser um medo profundo, comove. O olhar de uma pessoa apavorada para você, quando pensa que vai morrer, é uma das coisas mais doloridas já presenciadas. Quantas e quantas vezes tentamos nos iludir de que a morte é um acontecimento distante, mas, na realidade, não é. Está ali, respirando de leve bem atrás de você, esperando que você se vire. Obviamente você pode resistir, mas um dia acabará se virando.

Foram horas compridas. Dizem que morrer não dói nada, o que machuca mesmo é a saudade.

Ilustração pertenece a Chelsea Greene Lewyta

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

23:39


De repente era como sentir que estava vomitando seu próprio coração que, curiosamente, estava meio maltratado: um pouco corroído de um lado e em cada curva lhe faltava ao menos um pedaço. E ainda mais engraçado: ele batia, e a sensação era extremamente confortável. Não são muitos que podem tocar em seu próprio coração, veja bem.

Não que tivesse escolhido isso, óbvio que não. Mas o corpo da gente faz coisas inimagináveis quando é necessário, como nos fazer esquecer de uma lembrança muito devastadora que nos traz uma debilidade psicofisiológica. E se ele trazia esse benefício, certamente poderia também fazer com que ela vomitasse seu coração, não é mesmo? Era o direito dele, isso ela realmente compreendia.

Sentiu falta do sangue, que ela sabia ser bem vermelho e vívido e com um leve cheiro de estanho misturado com chumbo. Sua vista estava precisa, mais do que sentir, ela se encantava em ver seu coração bater; como era feio o pobre coitado, mas isso não importava, porque era magnético. Ela teve certeza de que seu coração era escorpiano, embora ela mesma não fosse.

Então ele veio, rápido e morno como a vida, escorrendo por entre seus poros -e suas pernas- enquanto seu coração, meio quebrado, maltratado, “velho de guerra”, batia teimosamente em suas mãos! Ela achou divertido: “Olha só como esse cretino não pensa em parar!”

Pelo jeito seu coração gostava de poesias dramáticas, cerejas com creme de leite e renda branca. Apreciava a delicadeza dos dias chuvosos e as lágrimas que ficam para sempre presas nos cílios daqueles a quem nós amamos e destruímos. Leu várias vezes “wuthering heights”, e em Lolita imagino que tenha sido ele a própria Lô aos doze, que Deus o perdoe!

“Por que ele bate? Que física é essa que eu desconheço? Será que é o que chamam de milagre? Fatos inexplicáveis cientificamente. Só sei que tenho nas minhas mãos um coração usado, que bate, e bate, se recusando a morrer, a peste! Eu o encaro, tentando colocá-lo em um caixão – ou de volta ao meu peito- e ele se recusa a ir, batendo, tão teimoso, em minhas mãos, tremendo, pulsando, fazendo vibrar o ar ao seu redor de um jeito particularmente mórbido. Em alguns lugares o sangue parece correr negro.”

O coração também a analisa, enquanto isso, ela pode sentir. “Acho que ele está decepcionado com esse tanto de racionalidade guerreando constantemente com a impulsividade que ele- que às vezes toma o lugar do cérebro- tanto quer que comande. Uma pena que isso aqui não seja utopia, onde os impulsos seriam apenas uma consequência de existir. Não me lembro onde estou, na verdade, então não faz realmente diferença pensar em utopia ou não, não é?”

Ela não percebe exatamente, mas está morrendo. Nunca percebeu, em todas as suas vidas, na verdade. Era assim: se distraía por alguns anos, amando ou sendo amada, e quando dava por si, estava morta. Certamente algo muito constrangedor, não presenciar sua própria morte. É que nunca se espera morrer de amor- e era o que sempre acontecia com ela, em contradição.

Morrer de amor, olhe só. Uma faca na garganta, marcando um corte grosseiro. Teve aquela outra vez também -claro, porque era uma mulher de muitos casos e muitas vidas- que morreu estrangulada por uma corrente de ouro dada por seu irmão, que por acaso tinha a beijado na boca- e em outros lugares- naquela mesma noite. Não gostava de pensar muito nessas coisas- nem na morte, nem no irmão- porque lhe confundiam a cabeça, como se tivesse cheirado éter, mas uma certeza está fincada em sua alma: reconheceria aquele perfume em qualquer lugar.

Ela se lembrava de um padre- ou um sacerdote, ou um númida, quem sabe?- dizer que o amor entre irmãos, quando não era fraternal, era amaldiçoado. Não havia escapatória, sabe? Eles se matariam de tanta culpa e também de desejo. Não se lembrava bem- sua cabeça rodava um pouco- aquelas eram as mãos dele em suas pernas ou eram de Paulo, que conhecera ontem...

A mulher, agora de joelhos, encostada na parede suja, estranhava aqueles pensamentos: não tinha irmãos, não era? Lembrava-se de ter um filho, mas filhos não beijam suas coxas e lambem seus lábios enquanto você chora, não é? Ou talvez estivesse enganada- como era tola a coitada!- porque as mãos que entravam por debaixo de sua saia eram de Bernardo, não, aquele seu vizinho casado?

Estava cansada e aborrecida com aquelas lembranças que ela nunca tinha vivido- ao menos era o que pensava-! Queria dormir logo, mas seu coração, ainda afagado carinhosamente por suas mãos de garras vermelhas, continuava a insistir em bater. “Mas que inferno! Terei que comê-lo!”. Foi a última coisa que pensou antes de ser carregada por alguém que usava aquele mesmo perfume, daquela noite em que fora estrangulada. 


P.S.- ambas as artes são da querida e talentosa Lílian

quinta-feira, 8 de março de 2012

“Oi.”

Foi isso que você disse, com seus olhos tristes, um cigarro pendurado na boca. Você estava com tédio, dava para sentir isso saltando dos seus poros junto com seu cheiro e suor, sua saliva envenenando o filtro do cigarro.

É, você ali, na minha frente, com seu jeito de homem perigoso, olhos obscuros sondando a minha pele clara como se quisesse me jogar no chão e acabar comigo ali mesmo, no meio daquelas pessoas desconhecidas. Como se quisesse me matar, mas também me morder, sentir meu gosto nos seus lábios, a textura contra seu corpo, o tom suave da minha voz enquanto você estivesse entre as minhas pernas.

Eu vi tudo isso no relance de olhos cinzentos que voaram sobre mim. Senti suas presas afundando na minha carne e o veneno fazendo com que a minha cabeça girasse. Isso tudo entre um abrir e fechar de olhos.

Não. Não era bem o seu estilo. Com meus olhos inteligentes, mutantes, perquiridores. Você odiaria essa palavra, né? Perquiridores. “Que coisa mais ridícula, isso.”, posso ouvir sua voz na minha mente enquanto você me olha com esse jeito de vampiro.

Um vampiro, com mil anos, um ar de quem não se adapta à vida. Mãos de quem governou um império e o observou ruir num silêncio indizível. Essa força que poderia reduzir uma lata de cerveja a pó em um segundo, num ato lânguido.

E então, a primeira vez que você tocou em mim, entrelaçando seus dedos nos meus cabelos, como se eu fosse uma escrava ou a pessoa mais importante da sua vida, foi aí que eu bebi de você. Do seu veneno com gosto de beladona e algo suave, verbena...

Beber uma pessoa, sabe como é? Você sentir a língua dela na sua boca e fazer um tratado sobre que palavras se embaralham na mente dela? Doeu muito, seus ossos sombreando a pele clara na curva entre o pescoço e o ombro, sobre a jugular, e suas olheiras arroxeadas, fazendo seus olhos brilharem como os de um cadáver fresco.

Meu amor, meu amor... Desculpe ser assim, tão sentimental... “Não posso viver sem a minha vida, não posso viver sem a minha alma”, conhece? Quero lhe dizer que você foi o melhor pesadelo que tive em todos os meus anos de tropeços e pés inflamados. Aquela coisa bonita de desentendimentos e alguns roxos do nosso amor que também era ódio, o seu sangue sob as minhas unhas...

Meu amor, seus ardores e venenos, suas mãos nos meus seios e as pernas entrelaçadas. E os roxos, os poemas, aqueles três dias (ou meses?) fora... Prefiro ter a coragem de fechar meus olhos a enxerga-lo novamente. Guardo sua lembrança tatuada em meus ossos, cravada à força na minha mente, fundindo meus olhos... Seus olhares me cortam...


Com amor,

moi